ICDH

Tragédia, crianças assassinadas a machadinha — Parte III

By Ana Maria Iencarelli

É uma evidência de que a prevenção, em todos os campos, não faz parte de nossas Políticas Públicas, nem, individualmente, de nosso comportamento em nossas vidas diárias

Medo. Muito medo. Diante daquele pedido de ajuda, o que me acontece frequentemente, eu me senti pequena, impotente, tive muito medo. Mesmo acostumada com a maldade humana que venho aprendendo a detectar ao longo da minha já longa vida, me surpreendi com a resposta do meu corpo, da minha mente. Estava diante de prints que anunciavam massacres de Crianças, já imediata e devidamente encaminhados ao órgão competente. Discurso em defesa de premissas de extermínio por extermínio, ou por causa de pequenas diferenças, apelo por contribuição financeira para a execução de massacres.

Pedido de dinheiro para financiar massacre de Crianças nas escolas.
Diriam alguns, ou muitos, para desconsiderar porque deve ser alguém brincando. Brincando??? Muitos verbos tiveram sequestrados os seus significados. Brincar é um deles. Mentir, é outro. Fraudar, outro. É possível que esse perfil fosse apenas um individual componente virtual da onda de terror que se espalhou entre as Crianças, os pais, os trabalhadores da Educação Escolar. Percebe-se que há uma intenção de desestabilizar, de causar medo, de causar insegurança, de sentir, mesmo que secretamente, o gostinho de um Poder tirânico. Em meio à mobilização de inúmeras Reuniões sobre “Segurança Escolar”, alimentar a sensação de impotência me parece fazer parte da crueldade que é um dos combustíveis do fantasma de massacre de criancinhas.

Mesmo sendo “fake”, esse perfil guarda o odor fétido da crueldade no desejo de atuar um ódio sem precedente, de se regozijar com tenebrosas imagens fantasiadas. Seriam verdadeiros? Ou, outra vez, fakes? Na dúvida, as providências devem ser buscadas. Já nos pesa o dito popular de que brasileiro só fecha a porta depois de roubado. É uma evidência de que a prevenção, em todos os campos, não faz parte de nossas Políticas Públicas, nem, individualmente, de nosso comportamento em nossas vidas diárias. Esse parece ser um traço muito comum entre nós que conduz à uma característica de improvisação, resolver problemas ao invés de evita-los, confundida muitas vezes com criatividade.

Medo. Ele não me largou mais. Ninguém pode me garantir que não vai mais se repetir uma cena tão subanimal como essa. Ninguém pode me trazer de volta a mínima segurança em que vivíamos. Mínima, porque há muito, com todas as balas de fuzil que mataram crianças, com todos os espancamentos que ceifaram vidas infantis, com todos os estupros diários que assassinaram corpo e alma de bebês, já estávamos funcionando no limite mínimo de segurança.

Tristeza. O medo era triste, e continua triste. Quanta dor. A impotência dói. Quando a situação veio à tona, ela já convivia conosco deslizando por baixo da superfície, fraturou algo de maneira perene. E quebrou também o mito do brasileiro amável, alegre. A lenda falsa de que nós somos uma terra sem guerras. E o que vivemos nas cidades partidas? O apartheid das nossas capitais e das grandes cidades. As mais desenvolvidas são as que exibem as maiores desigualdades. E as mais violentas.

Desânimo. Não. Por mais que seja enfadonho e decepcionante a repetição de tragédias contra Crianças, não podemos abandonar os pequenos já abandonados pela sociedade e pelo Poder Público. É preciso continuar. É preciso transformar o medo, a tristeza, a dor, o desânimo, a decepção, em força, em mais compromisso.

Quando vemos que a irresponsabilidade de agentes públicos que numa canetada condenam várias Crianças à Privação Materna Judicial, em canetadas impulsivas traçadas por dogmas derivados de um pedófilo, seguido à risca, constatamos que o conceito de tragédia está capilarizado, inundando uma parcela grande de vulneráveis, vítimas de violências de muitas formas.

Quando é conseguida uma Lei, 13.431/2017, que garante a dignidade da Criança por ocasião da Revelação de violências sofridas por ela, permitindo uma Escuta Protegida, e gravada, o que impede devaneios de laudos interpretativos, que acusam a Criança de ser mentirosa e não apresentam as provas, constatamos que há uma agente pública que está fazendo uma campanha pública para burlar essa Lei de Proteção. Aliás, essa atitude pode ser enquadrada no Art. 286 do código penal, porque incita ao crime de lesar nosso ordenamento legal, assim como viola também os Artigos que garantem os Direitos da Criança, escritos no ECA.

A omissão e o silêncio que cala situações agressivas vistas são a conivência que protege o agressor. A recente Lei Henry Borel cobra a responsabilização de membros da família, vizinhos, professores, médicos, trouxe alguns episódios de “ninguém viu nada”, como no caso da bebê Quênia, dois anos, assassinada sob a guarda do pai, com a companhia da madrasta. Eram 59 lesões visíveis no pequeno corpo que tinha menos de 70cm de altura. Ninguém viu nem ouviu nada. Nem um grito, nem um choro, nem um hematoma, nem uma lesão vaginal. Nem família extensa, nem vizinhos, nem creche. Leis, não faltam. Falta civilidade com honestidade.

A machadinha, a faca, a fuzil, a socos e pontapés, a caneta, estamos assassinando nossas Crianças, com crueldade, em cenas que atestam uma perversidade inimaginável que se fez e faz realidade.

Ataque a creche (Foto: Folhapress)


*Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos, Colaboradora do ICDH.

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