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Relembrando a Revolta da Chibata

BY * Lucia Helena Issa

Um motim organizado pelos soldados da Marinha brasileira de 22 a 27 de novembro de 1910 marcaria para sempre a história do racismo e da luta contra ele no Brasil.  A Revolta da Chibata foi protagonizada por jovens marinheiros nos barcos da Marinha que estavam na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, e foi desencadeada pelas torturas e castigos físicos a que eram submetidos os marinheiros negros no Brasil.

O quê: Revolta da Chibata

Quando: 22 a 27 de novembro de 1910

Onde:  Rio de Janeiro

O que aconteceu antes:

A atmosfera de indignação e revolta já dominava muitas embarcações brasileiras desde o início daquele ano de 1910.

A Escravidão acabara oficialmente no Brasil em 1888, mas as punições físicas em forma de chibatadas impostas aos marujos negros brasileiros por seus almirantes tinha a forma, o cheiro, o sangue e a dor imposta aos seus ancestrais nos pelourinhos. A chibatada, teoricamente, era aplicada apenas contra os marinheiros que violassem as regras da corporação, mas na prática os mais castigados era os marujos negros e uma simples pergunta ou um pedido fora de lugar eram motivos para a tortura e as chibatadas.

O uso da chibata como forma de castigo físico era algo que a Marinha brasileira havia herdado da Marinha portuguesa a partir de um código conhecido como “Artigos de Guerra”. Era uma forma punição desumana e aplicada somente aos postos muito baixos da corporação, ocupados geralmente pelos negros. Mesmo modernizando a frota brasileira com navios potentes e de alta tecnologia na época, a Marinha jamais havia modernizado as relações dentro da corporação. Oficias brancos e de elite humilhavam os marujos negros, muitos dos quais haviam sido forçados a entrar na Marinha pela fome, pela desigualdade social que os obrigava a cumprir um contrato de longo prazo em mar sem terá acesso a um tratamento digno.

Um pouco antes da revolta, durante uma viagem pela costa chilena, um grupo de marinheiros havia se revoltado com as chibatadas sofridas por um companheiro e começaram a refletir sobre a crueldade desses castigos.

O estopim para a Revolta aconteceu quando o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes foi punido com 250 chibatadas e não teve direito sequer a um médico. Os marujos já haviam tido contato com marinheiros estrangeiros e vinham descobrindo que a Marinha de outras nações havia abolido há décadas essas punições físicas.

O próprio João Cândido, o líder do motim, havia estado na Inglaterra pouco tempo antes da Revolta e descoberto sobre o motim realizado no Encouraçado Potemkin, onde os marujos russos rebelaram-se contra o tratamento dado a eles por seus almirantes.

O cenário de injustiças no Brasil não incluía apenas as punições físicas. Muitos marujos eram, em sua grande maioria, originários de famílias pobres que sofriam com a miséria e a ausência de direitos básicos que caracterizavam suas vidas.

A Revolta da Chibata explodiu de fato no dia 22 de novembro de 1910, após a punição de Marcelino. Os marinheiros rebelaram-se naquele dia, tomando o controle de quatro embarcações da Marinha brasileira: os navios Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Deodoro.

Os marujos exigiam o fim dos castigos físicos e, liderados por João Candido, que entraria para a história como o “Almirante Negro”, ameaçavam usar os canhões das embarcações. João e seus companheiros redigiram um manifesto que detalhava as exigências e o enviaram para o gabinete do presidente Hermes da Fonseca.  Exatamente naquele momento, o presidente oferecia uma festa no Rio de Janeiro em comemoração à sua posse.

O documento escrito pelos marujos era eloquente, sem erros de gramática, e muitos historiadores acreditam que tenha sido redigido pelo marinheiro Adalberto Ferreira Ribas. A historiadora Silvia Capanema afirmaria anos depois sobre ele:  “ (…)  era bem redigido e caligrafado, apresentava várias demandas objetivas – fim dos castigos corporais, aumento do soldo, substituição dos oficiais tidos como incompetentes, melhoria no nível de educação de alguns marujos – e resumia, de forma pensada, o espírito central dos marinheiros, que se apresentavam como “cidadãos brasileiros e republicanos” que não “suportavam mais a escravidão na Marinha (…) Tudo indica que foi escrito por alguém que dominava a caligrafia e tinha bela escritura”.

Pressionado tanto pela Revolta dos marinheiros quanto por políticos de oposição, Hermes da Fonseca aceitou os termos propostos e finalmente prometeu colocar fim aos castigos físicos na Marinha em 26 de novembro de 1910.

O marechal Hermes também prometera a anistia a todos os envolvidos, mas sua promessa jamais foi cumprida e, no dia 28 de novembro, um decreto exonerou cerca de mil marinheiros por indisciplina. Uma segunda revolta teve início e, dessa vez, no Batalhão Naval estacionado na Ilha das Cobras.

Essa segunda revolta foi massacrada violentamente, e os envolvidos foram aprisionados e torturados na Ilha. Centenas de marinheiros também foram enviados, como punição, para trabalhar nos seringais na Amazônia, e muitos deles foram fuzilados durante o trajeto. Ao todo, foram mais de 200 marinheiros mortos e 2000 expulsos da Marinha, além de 12 mortos do lado oposto.

O que aconteceu depois

João Cândido, o Almirante Negro, passou dois anos na prisão do Rio de Janeiro e morreu na mais absoluta miséria.

Só anos depois, ele seria absolvido e anistiado, transformando-se em uma referência de luta para milhões de jovens negros no Brasil, em tema de desfiles inesquecíveis das escolas de samba, em músicas emocionantes e em nome de ruas em todo o Brasil, mas sua família ainda aguarda uma indenização do Estado brasileiro.

Os castigos físicos foram abolidos poucos anos depois, os marinheiros brasileiros passaram a contar com vários direitos sociais, tratamentos de saúde, e pagamentos um pouco melhores.

Mas a desigualdade salarial, o abismo entre marujos e almirantes, e o racismo dentro da Marinha brasileira ainda são muito grandes. Uma desigualdade e um racismo que refletem a própria sociedade brasileira e que jamais foram superados de fato.

 

* Lucia Helena Issa

Jornalista, escritora e embaixadora da paz por uma organização Internacional. Morou seis anos na Europa, de onde escreveu reportagens para a Folha de São Paulo e Jornal do Brasil. Recebeu vários prêmios pelo seu trabalho nos campos de refugiados palestinos, entre eles, o Estrella del Sur, no Uruguai, a medalha Marielle Franco, em Salvador. Atualmente é colunista do Monitor do Oriente, está terminando um livro sobre as mulheres palestinas, e vive entre o Rio de Janeiro e o Oriente Médio, colaboradora do ICDH.

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