ICDH

Ocorrência Policial: Uso proporcional da força, despreparo ou execução?

Considerações do Instituto de Cidadania e Direitos Humanos

Por Vander Cherri

A lamentável ocorrência registrada em Alfenas, no sul de Minas Gerais, onde uma ação de abordagem policial, inicialmente motivada por uma denúncia de perturbação do sossego, culminou no homicídio de um indivíduo em aparente estado de surto psicótico, deve ser investigada de forma imparcial. A situação, desde o seu nascedouro, apresenta contornos delicados, exigindo uma análise criteriosa dos fatos, das ações dos agentes envolvidos e da proporcionalidade do uso da força. A gravidade da ocorrência se intensifica diante da divulgação de informações, por parte da Polícia Militar, que buscam desqualificar a vítima, levantando sérias questões sobre a lisura e a imparcialidade da apuração dos fatos. A sociedade clama por respostas claras e transparentes, a fim de garantir que a justiça seja feita e que a verdade prevaleça, independentemente de quem sejam os envolvidos.

    De acordo com as informações preliminares, a Polícia Militar foi acionada para atender a uma ocorrência de perturbação do sossego em Alfenas. Ao chegarem ao local, os policiais se depararam com um indivíduo em estado de surto, portando uma faca de cozinha e proferindo ameaças. Relatos indicam que a equipe policial tentou, inicialmente, conter o indivíduo com o uso de uma arma de choque, porém, sem sucesso. Diante da persistência da ameaça, os policiais efetuaram disparos de arma de fogo, atingindo o indivíduo, que veio a óbito. A quantidade de disparos efetuados, entre seis e sete, levanta questionamentos sobre a necessidade e a proporcionalidade do uso da força letal, especialmente considerando o estado de saúde mental da vítima. A ausência de informações detalhadas e imparciais por parte da imprensa dominante, que se limitou a reproduzir o release da Polícia Militar, agrava a situação e impede uma análise completa dos fatos.

    A divulgação de informações por parte da Polícia Militar, buscando desqualificar a vítima, merece especial atenção. A tentativa de justificar a ação policial, atribuindo à vítima características como agressividade e violência, levanta sérias dúvidas sobre a imparcialidade da corporação na apuração dos fatos. É fundamental que a investigação seja conduzida de forma independente e transparente, a fim de garantir que a verdade seja estabelecida e que os responsáveis, caso comprovada a culpa, sejam devidamente responsabilizados. A imagem da Polícia Militar, instituição fundamental para a segurança pública, não pode ser maculada por ações que violem os direitos humanos e o princípio da proporcionalidade no uso da força. A sociedade espera que a corporação adote medidas rigorosas para apurar os fatos e garantir que situações como essa não se repitam.

    A ocorrência em Alfenas expõe a necessidade urgente de aprimorar o treinamento das forças policiais em relação ao manejo de situações envolvendo pessoas em surto psicótico. É imprescindível que os policiais estejam preparados para lidar com indivíduos em crise, utilizando técnicas de negociação, contenção não letal e, em última instância, o uso progressivo da força, sempre observando os princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade e moderação. A falta de preparo adequado pode levar a desfechos trágicos, como o que ocorreu em Alfenas, e comprometer a confiança da população na polícia. Investir em treinamento e capacitação é fundamental para garantir que os policiais atuem de forma profissional e respeitosa, preservando a vida e a integridade física de todos os envolvidos.

    Diante da complexidade e da gravidade dos fatos, o INSTITUTO DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS se propõe a analisar minuciosamente a conduta dos agentes policiais envolvidos na ocorrência, à luz da legislação brasileira e dos princípios do direito. Serão avaliados os protocolos de abordagem policial, o uso progressivo da força, a proporcionalidade da ação e a eventual ocorrência de excesso por parte dos policiais. A análise considerará, ainda, o estado de saúde mental da vítima e a sua capacidade de discernimento no momento da abordagem. O objetivo final é fornecer uma análise técnica e imparcial dos fatos, a fim de contribuir para a busca da verdade e para a responsabilização dos eventuais culpados, garantindo que a justiça seja feita e que a sociedade receba as respostas que merece.

FUNDAMENTAÇÃO

    A presente seção adentra o cerne da questão, com o propósito de desmembrar os intrincados aspectos jurídicos que emergem da ocorrência em Alfenas, Minas Gerais. A análise subsequente visa, portanto, aprofundar o exame da responsabilidade estatal, a legalidade do uso da força e a salvaguarda da dignidade humana, pilares que sustentam o Estado Democrático de Direito.

Da Responsabilidade Objetiva do Estado e o Nexo de Causalidade

        

    No caso em apreço, a ação dos policiais militares, ao efetuarem disparos de arma de fogo que culminaram no óbito do indivíduo, estabelece, em um primeiro momento, o liame causal necessário para a configuração da responsabilidade estatal. A discussão acerca da proporcionalidade do uso da força e da eventual existência de excludentes de ilicitude, como a legítima defesa ou o estrito cumprimento do dever legal, não afastam, de plano, o dever de indenizar. Tais alegações, se comprovadas, poderão influenciar na quantificação da indenização, atenuando ou até mesmo excluindo a responsabilidade do agente público, mas não eximem o Estado de Minas Gerais de reparar os danos causados à família da vítima.

    A tentativa de desqualificar o falecido, mediante a divulgação de informações sobre seu comportamento pretérito, não possui o condão de elidir a responsabilidade estatal. Ao contrário, tal conduta pode configurar um agravante, caracterizando uma violação ao direito à imagem e à honra, passível de responsabilização por danos morais adicionais. A análise da conduta dos agentes públicos deve ser pautada pela objetividade e pela imparcialidade, buscando esclarecer se houve excesso no uso da força e se todas as medidas possíveis foram tomadas para preservar a vida do indivíduo.

Da Ilegalidade da Ação Policial e o Desrespeito aos Direitos Fundamentais

        A ocorrência em análise suscita questionamentos acerca da legalidade da ação policial e do respeito aos direitos fundamentais do cidadão, em particular o direito à vida e à integridade física. A narrativa dos fatos, que aponta para a utilização de múltiplos disparos de arma de fogo após tentativas frustradas com arma de choque, sugere um descompasso com os protocolos de uso progressivo da força e com o dever de proteção à vida, constitucionalmente assegurado.

    A Constituição Federal, em seu artigo 5º, caput, garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O inciso III do mesmo artigo veda expressamente a tortura e o tratamento desumano ou degradante. O artigo 1º, inciso III, eleva a dignidade da pessoa humana a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Esses dispositivos constitucionais impõem ao Estado o dever de proteger a vida e a integridade física de todos os cidadãos, mesmo daqueles que, em razão de um surto psicótico, representem uma ameaça. A Lei nº 13.060/2014, que disciplina o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, estabelece em seu artigo 3º que o uso da força deve ser proporcional à gravidade da ameaça e à resistência do indivíduo, priorizando a preservação da vida.

    A utilização de arma de fogo, com múltiplos disparos, em um indivíduo em surto psicótico, que, segundo os relatos, portava apenas uma faca de cozinha, demonstra uma flagrante desproporcionalidade da resposta policial. A priorização da segurança pública, neste caso, não pode justificar a supressão do direito fundamental à vida. Assim, é imprescindível que a conduta dos agentes envolvidos seja rigorosamente apurada, a fim de verificar se houve excesso no uso da força e se todas as medidas possíveis foram tomadas para preservar a vida do indivíduo em sofrimento psíquico. A eventual comprovação de que a ação policial extrapolou os limites da legalidade e da razoabilidade impõe a responsabilização dos agentes envolvidos, tanto na esfera administrativa quanto na penal, a fim de garantir a justiça e a reparação dos danos causados à família da vítima.

Da Violação à Dignidade da Pessoa Humana e da Necessidade de Investigação Imparcial

        A divulgação de informações desabonadoras pela Polícia Militar, em um aparente esforço para justificar a letalidade da ação, representa uma afronta direta ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, eleva a dignidade da pessoa humana a fundamento do Estado Democrático de Direito, conferindo-lhe um status de valor supremo que irradia seus efeitos sobre todo o ordenamento jurídico.

    A presunção de inocência, embora tradicionalmente associada ao processo penal, possui uma dimensão mais ampla que se estende à proteção da imagem e da reputação de qualquer indivíduo, vivo ou morto. A tentativa de desqualificar a vítima, mediante a divulgação de informações sobre seu suposto comportamento agressivo e violento, antes que uma investigação completa e imparcial seja realizada, configura uma grave violação a esse princípio. O artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, assegura o direito à honra e à imagem das pessoas, garantindo indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação.

    Diante da gravidade dos fatos, torna-se imprescindível a realização de uma investigação completa, transparente e imparcial, com a participação ativa do Ministério Público e da Defensoria Pública. A apuração das circunstâncias que levaram à morte do indivíduo em surto deve ser conduzida de forma rigorosa, buscando esclarecer se houve excesso no uso da força por parte dos policiais militares e se foram observados os protocolos e as diretrizes estabelecidas para o manejo de situações envolvendo pessoas com transtornos mentais. A transparência e a lisura do processo investigatório são essenciais para assegurar a credibilidade das instituições e a confiança da sociedade na capacidade do Estado de promover a justiça e proteger os direitos fundamentais de todos os cidadãos.

Da Negligência Estatal no Preparo das Forças Policiais e a Omissão no Dever de Cuidado

        A trágica ocorrência em Alfenas expõe uma problemática latente no preparo das forças policiais para lidar com situações envolvendo pessoas com transtornos mentais. A escalada da ocorrência, desde a perturbação do sossego até o desfecho fatal, com múltiplos disparos de arma de fogo, levanta sérias questões sobre a adequação dos protocolos de atuação e a capacitação dos agentes envolvidos.

    A Constituição Federal, em seu artigo 5º, garante a todos o direito à vida e à segurança, incumbindo ao Estado a promoção e proteção desses direitos. O despreparo e a falta de treinamento adequado dos policiais militares para lidar com pessoas em surto psicótico configuram negligência e imperícia, contribuindo de forma determinante para o desfecho fatal. A Lei nº 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, estabelece em seu artigo 4º que “o tratamento será oferecido preferencialmente em serviços comunitários de saúde mental”. Embora a lei se dirija primariamente aos serviços de saúde, ela explicita a necessidade de uma abordagem humanizada e não violenta no tratamento de pessoas com transtornos mentais, o que deve ser observado também pelas forças de segurança.

    Diante do exposto, a responsabilidade pela formação e qualificação dos agentes de segurança pública recai sobre o Estado, que deve arcar com as consequências de sua omissão. A falta de preparo adequado dos policiais militares, evidenciada na ocorrência em Alfenas, configura uma grave violação dos direitos humanos e demonstra a urgente necessidade de revisão dos protocolos de atuação e investimento em capacitação. A análise da situação fática à luz da legislação vigente revela que a conduta dos agentes de segurança pública pode ter extrapolado os limites da legalidade, configurando, em tese, crime de homicídio com dolo eventual, caso se comprove que os policiais assumiram o risco de matar ao efetuar os disparos. Ademais, a divulgação de informações desabonadoras sobre a vítima, com o objetivo de justificar a ação policial, configura uma afronta à dignidade da pessoa humana e um desrespeito à presunção de inocência.

        Em síntese, a análise dos fatos e dos fundamentos jurídicos aplicáveis revela uma série de falhas e omissões por parte do Estado de Minas Gerais, que culminaram na trágica morte do indivíduo em Alfenas. A responsabilidade objetiva do Estado, a ilegalidade da ação policial, a violação à dignidade da pessoa humana e a negligência no preparo das forças policiais são elementos que, em conjunto, demonstram a necessidade de responsabilização do Estado e de reparação dos danos causados à família da vítima.

Dessa forma, o ICDH, entende-se pela necessidade de investigação rigorosa e imparcial da ação policial ocorrida em Alfenas, Sul de Minas Gerais, a fim de apurar a proporcionalidade do uso da força e eventual despreparo dos agentes no manejo de situações envolvendo indivíduos em surto, pelas razões acima demonstradas.

    Vander Cherri

            Advogado e Presidente do ICDH, Mestre em Adolescente em conflito com a Lei. Membro do Coletivo de Estudos e Pesquisas em Socioeducação. Presidente do Conselho de Direito da Criança e Adolescente de Alfenas MG.

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