MARIA HELENA ZAMORA
Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Professora da Pós-graduação em Psicologia da PUC-Rio. Vice-coordenadora do LIPIS, PUC-Rio. Professora convidada da National/Global Advisory Board for Faith and Justice in Community and Society, com sede em Indiana, USA, em 2011. Publica e pesquisa sobre os temas direitos humanos, direitos da criança e do adolescente, Psicologia Social Comunitária.
Resumo: O presente artigo traz a definição do termo “defensores de direitos humanos”, conforme a legislação internacional e mostra a importância da ação desses ativistas na conquista e afirmação desses direitos. Aponta-se ainda para a escassez de publicações sobre o assunto no campo da psicologia, bem como a necessidade de atendimento de natureza interdisciplinar para os defensores, cuja trajetória de vida é marcada por várias formas de sofrimento psíquico. Também é mostrada a situação desses defensores nas favelas brasileiras, com foco no Rio de Janeiro.
Palavras-chave: defensores de direitos humanos; favelas; sofrimento psíquico; atendimento psicológico.
HUMAN RIGHTS DEFENDERS: SUFFERING PSYCHIC AND PSYCHOLOGICAL CARE
Abstract: The current article brings the definition of the term “human rights defender”, according to international legislation and shows the importance of these activists’ actions in getting and preserving these rights. It also shows the lack of writings on the issue in the psychology field, as well as the need of a interdisciplinary approach to the defenders, whose lives are marked by several types of psychic suffering. Their situation in the Brazilian favelas is also shown, focusing on the ones in Rio de Janeiro.
Keywords: human rights defenders; slums; psychic suffering; psychological care.
Defensores de direitos humanos: Sofrimento psíquico e atendimento psicológico
Maria Helena Zamora“Que você vai morrer é certo. Mas você vai pedir para morrer!”. Para Ivete Bastos, do Pará, que ouviu isso dos seus perseguidores e ainda assim continuou a luta. Pela confiança, ampliada nos nossos breves dias. Porque onde eu estiver, eu te levarei.
Quem são os defensores?
Os direitos humanos estão consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e afirmados naquela ocasião histórica pela grande maioria dos países então existentes. Sobreviventes de duas guerras mundiais, as nações procuravam estabelecer consenso sobre os direitos mínimos a serem respeitados por todos os países que pactuaram com a Declaração.
Consoantes com definições internacionais, que aqui trazemos de maneira simplificada, chamamos de defensores de direitos humanos, as pessoas que trabalham, de forma não violenta, por qualquer de tais direitos, reafirmando sua universalidade e a indivisibilidade. Confirmando a importância da realização dos princípios da Carta das Nações Unidas para a promoção e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas em todos os países do mundo, a Assembleia Geral da ONU adotou, em 1998, a “Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos”, que define formalmente e confere legitimidade aos defensores de direitos humanos (aqui simplesmente chamaremos de defensores).
O documento sobre os defensores foi adotado por consenso pela Assembleia Geral e, portanto, representa um forte compromisso dos Estados-Membros pela sua implementação. Em tal carta está endossado o “valioso trabalho de indivíduos, grupos e associações ao contribuir na efetiva eliminação de toda violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais” e ele também trata sobre “a relação entre a paz internacional, a segurança e o desfrute dos direitos humanos e liberdades fundamentais” (Eguren, 2005, p.14).
Os defensores podem ser de qualquer gênero, idade, raça, de qualquer classe social, origem, convicção religiosa ou política e de todo tipo de qualificação profissional, nível de escolaridade e inserção social. Eles não se encontram só em movimentos sociais e organizações não-governamentais (ONGs), mas podem fazer parte de governos ou serem membros de setores privados. Eles são definidos, sobretudo, pelo que fazem, por suas ações concretas em busca do bem comum. Em um plano ideal, atuando juntos, defensores, estado e indivíduos, trabalhariam para a garantia da segurança dos defensores e, de resto, para que seu trabalho não fosse mais necessário, com a garantia dos direitos universais de qualquer pessoa.
Embora a Declaração da ONU sobre Defensores dos Direitos Humanos não crie novos direitos especiais, esse instrumento estabelece os padrões mínimos necessários para que alguém possa fazer essa incessante defesa e estipula proteções específicas para defensoras e defensores ao ratificar certos direitos, que aqui trazemos de maneira resumida: buscar a proteção e a realização dos direitos humanos em nível nacional e internacional; realizar ações em favor dos direitos humanos individualmente ou em associação com outros; formar grupos, associações e organizações não governamentais; reunir-se ou aglomerar-se e realizar manifestações e protestos de caráter pacífico; exercer o direito à liberdade de opinião e de expressão, inclusive o direito a buscar, obter, receber e possuir informações sobre direitos humanos; desenvolver e debater novas ideias e princípios relacionados aos direitos humanos e preconizar sua aceitação; apresentar aos órgãos e agências governamentais, bem como às organizações dedicadas a questões públicas, críticas e propostas para melhorar seu funcionamento e chamar atenção sobre qualquer aspecto de seu trabalho que possa impedir a realização dos direitos humanos; fazer queixas sobre ações e políticas oficiais relativas aos direitos humanos e a que tais queixas sejam investigadas; oferecer e prestar assistência jurídica profissional ou outros assessoramentos ou assistências em defesa dos direitos humanos; participar de audiências, procedimentos e julgamentos a fim de avaliar sua observância do direito nacional e das obrigações internacionais em matéria de direitos humanos; ter acesso e a comunicar-se de forma desimpedida com as organizações não governamentais e intergovernamentais; dispor de recursos jurídicos efetivos para indenizações e reparações; exercer legitimamente a ocupação ou profissão de defensora ou defensor dos direitos humanos; proteção efetiva, inclusive a medidas de proteção efetivas, quando sob risco de ataques, independentemente da posição ou condição do suposto perpetrador; solicitar, receber e utilizar recursos (inclusive contribuições do estrangeiro). Entendemos ser necessário enumerar os principais pontos do documento, porque podemos dimensionar a gravidade das correspondentes violações que se fazem presentes no Brasil e em outros países.
Defensores de direitos humanos no Brasil
Apesar dos defensores serem agentes fundamentais também no desenvolvimento das instituições democráticas, seu trabalho pode ser uma atividade perigosa, de acordo com a realidade de cada país. No Brasil, seus agressores se valem do poder e da impunidade, de que não raro dispõem, para efetivamente perseguir, causar problemas trabalhistas e constrangimentos, criminalizar, impedir ou dificultar a ação de suas organizações, prender ilegalmente, torturar e até mesmo matar esses militantes (ONU, 2012). A maioria dos defensores trabalha em base local, regional ou nacional, em suas comunidades e países e recebem destaque por suas ações, em um mundo de comunicações globalizadas. Eles de fato são acessíveis e alcançáveis por seus perseguidores.
Em muitos países e também no Brasil, os riscos que os defensores correm são tão maiores quanto menos favorecida economicamente for sua condição social. Também é fato que se potencializam os riscos quanto mais eles contrariam os interesses de setores poderosos. A necessidade de protegê-los de situações hostis fica então mais premente. Ativistas ligados ao meio ambiente e à reforma agrária têm sido ameaçados e assassinados em todo o território nacional, assim como aqueles que defendem a diversidade sexual, tornando estas militâncias provavelmente as atividades mais arriscadas. Coletivos feministas, jornalistas, ativistas que combatem o racismo contra negros e indígenas, a prática histórica de tortura e os que abraçam outras lutas igualitárias também tem sido vitimizados, de diferentes maneiras. Sabe-se também que características como gênero e raça/etnia atribuída podem torná-los mais vulneráveis a certos tipos de violência, como ataques sexuais e tortura, ou à morte. O fato de serem moradores e/ou trabalhadores de áreas controladas por grupos violentos e pela ação também violenta de forças repressivas do Estado pode colocá-los em situação ainda mais frágil.
É preciso enfatizar que essas situações de vulnerabilidade mencionadas não se excluem, mas se reforçam, se somam, de maneira complexa, constituindo quadros singulares de vulnerabilidade (Paiva, Ayres & Buchalla, 2012). Isso deve ser considerado no desenho das ações de proteção e de prevenção. Um plano de segurança e proteção deve conhecer ao máximo o grupo e as pessoas a serem protegidos. A face do agente violador também pode se repetir em diferentes territórios, sendo, na maioria dos casos, empresas transnacionais e em outras situações, os próprios governos, ficando problemática a real possibilidade de proteção.
O melhor instrumento para proteger os defensores é a ação política, da parte de governos e da sociedade civil, atuando contra aqueles que os ameaçam. Como foi dito, na “Declaração sobre os Defensores”, protegê-los é um dever do Estado. Ou seja, nenhuma proposta de trabalho de segurança pode substituir a devida obrigação e responsabilidade do Estado para a efetiva proteção dos defensores. Em resposta a tais urgentes demandas, a política nacional de proteção aos defensores foi instituída pelo Decreto Presidencial nº. 6.044, de 12/02/2007. A atuação do Programa também está voltada à articulação de medidas e ações que incidam na superação das causas que geram as ameaças e as situações de risco. O Programa está presente em sete estados da Federação, inclusive o Rio de Janeiro, porém, enfrenta ainda muitos problemas para se efetivar no país.
Contudo, a responsabilização do Estado não é contraditória ao trabalho dos mais variados setores no apoio à atuação desses agentes sociais, como está claro na literatura mencionada. A sociedade civil em geral pode criar redes de caráter mais ou menos informais de monitoramento para garantir que, sempre que um defensor sofra uma ameaça ou passe por outras formas de violação, as informações sejam rapidamente partilhadas, caminhando para a rápida denúncia, investigação e responsabilização dos responsáveis (DHNet, s/data).
Ressaltamos nos documentos aqui trazidos a repetição da necessidade de informações estratégicas e atendimento de natureza interdisciplinar para os defensores, um grupo social particularmente vulnerável. O quadro de permanente ameaça contra esses indivíduos e grupos está presente também nas favelas do Rio de Janeiro.
Defensores de direitos humanos em favelas
Um dos aspectos mais proeminentes da urbanização brasileira é seu fracasso para incorporar a pobreza urbana, em um cenário de desigualdade social (Therborn, 2010; Lavrador, 2005). Isso interfere significativamente na dinâmica social das cidades, bem como na (produção de) subjetividade de seus habitantes (Dimenstein, Zamora & Vilhena, 2004). A favela é marcada pelo discurso da ausência do Estado e por ser marcada pela “falta”, pensada no negativo, quando outras áreas são tomadas como referências aceitáveis. Evidentemente, dizer isso não significa negar suas reais necessidades, a ausência de direitos mínimos e a violência estrutural que as atinge. Significa situá-las historicamente. Elas são – e sempre foram – vistas como espaços violentos, sem urbanização mínima nem limpeza, de aglomeração desordenada, ou ainda, como não pertencentes à cidade, o que tem justificado, ao longo dos anos, numerosos programas de remoções.
Para Pandolfi e Grynszpan (2003), a opacidade da favela está justamente no destaque que ela possui advindo da mídia, do Estado e de muitas ONGs, como sendo um problema, o que não passa de um olhar parcial que produz a certeza de que já sabemos tudo sobre a favela, como se não fosse necessário efetivamente conhecer cada um desses lugares e sua complexa rede de relações, em sua inteireza e complexidade. Ela é frequentemente vista como um bloco homogêneo, em que todas são iguais ou, pelo menos, muito parecidas, sendo dispensável conhecê-las de perto (Alvito, 2001).
Além disso, ainda há, por outro lado, uma ideia de que todas as favelas sejam comunidades, onde todos se conhecem e por isso haveria de forma “orgânica”, inerente, espontânea, uma prática solidária entre seus moradores, onde a lógica do coletivo e do bem comum seria hegemônica. Ora, se o individualismo é um modo de subjetivação hegemônico, incessantemente fabricado e disseminado por instâncias institucionais e midiáticas, por exemplo, não seria correto idealizar os espaços imunes a tal produção “serializada” de subjetividades:
“A obscuridade da favela permitia que ali se desenvolvessem formas diferentes de ser, seja pelo samba, seja por sua religiosidade ou preservação de costumes do interior do país por parte de seus migrantes, hoje tem dado lugar à criação de um espaço cada vez mais privatizado e individualizante, que tem um efeito desagregador dos vínculos de sociabilidade entre seus moradores” (Vergne, 2010, p. 16).
Contudo, mais do que definir, é importante pensar como esses espaços são produzidos como imagens, discursos e práticas, inclusive de Estado. Os estereótipos que marcam a favela como o lugar da falta apontam para duas questões, que aqui trazemos superficialmente: A primeira se situa no discurso que nega a presença estatal, desconsiderando suas intervenções, tantas vezes marcadas pela incoerência com a garantia dos direitos das pessoas que lá vivem pois o Estado está presente nas favelas, sim. Um Caveirão, por exemplo, é coisa bem visível. Não se nega a falta das devidas políticas. Mas falar de “ausência de Estado”, além de se constituir como um mau relato, acaba por se tornar uma má análise, pois suprime a crítica à inadequação das muitas políticas públicas existentes, em contraste com as reais demandas das famílias que nesses espaços vivem.
A segunda questão se refere à atribuição a seus moradores de uma fragilidade – ou de uma maldade – que os impediria de refletir e de indicar soluções para seus próprios problemas. Desde o surgimento das primeiras favelas até os dias de hoje, ainda é muito presente a ideia de que ela é um mal a ser vencido ou uma expressão de violência a ser apaziguada, não devendo seus moradores, como parte do problema, opinar sobre a resolução. As políticas públicas não raro se mostram ineficientes, não integradas e descontínuas, flutuando ao sabor dos interesses eleitoreiros e não formuladas a partir de um diagnóstico participativo e consolidadas a partir de uma atuação aberta e transparente, onde a população definiria suas questões e prioridades (Baremblitt, 2002).
Esses espaços expressam uma outra lógica de organização em função das dificuldades acarretadas pela histórica ineficácia do poder público em prover seus direitos básicos – como o de moradia, por exemplo. Elas não são localidades separadas da cidade, ao contrário, a compõem. Efetivamente, as políticas de extinção e repressão não estão extintas, mas, mesmo com elas, os espaços populares sobrevivem, se ampliam, se diversificam e se afirmam enquanto uma outra expressão que também compõe a face da cidade. São parte das contradições do capitalismo que produz uma estratificação de classes, onde as condições de um determinado grupo social encontram-se ligadas às condições dos outros, por mais que se queira produzir – e efetivamente se produzam – os chamados guetos (Wacquant, 2008; Bauman, 2003).
O confinamento dos ricos para proteger a riqueza, refugiando-se em condomínios fechados e com aparato de segurança, e o confinamento para controlar os pobres e sua insurgência não conseguem ser sempre bem sucedidos. Tal conflito potencial, em um cenário de desigualdade, está sempre latente e a violência é um possível inquietante.
Luta por direitos humanos nas favelas cariocas
No Rio de Janeiro, as favelas se constituem em territórios que exprimem os efeitos da segregação social e são marcadas também por um nítido corte racial (Zamora, 2012). São territórios estigmatizados e há uma ampla literatura (Paiva & Burgos, 2009; Vilhena, 2009; Souza e Silva, 2010) apontando para a representação da favela no imaginário da cidade “relacionada ao lugar que ela historicamente ocupa, de antítese do ideal de civilização que norteia o início de nossa era republicana” (Paiva & Burgos, 2009, p. 9), como vimos afirmando.
A denominação de uma comunidade popular como “área de risco” ou mesmo como “favela” pode ser ainda estigmatizante, diante da evidente associação com o perigo. Diversos autores (Alvito, 2001; Pandolfi e Grynszpan, 2003; Naiff & Naiff, 2005; Machado da Silva, 2008, 2010) chamam a atenção para a questão da violência e também para os efeitos dessas representações sobre as favelas e os moradores. É inegável que existe uma pauta de graves problemas a serem solucionados, mas que não são nem originários do local nem ocorrem pela vontade e adesão do morador comum. Afinal, como no caso da venda varejista de drogas consideradas ilícitas, é preciso lembrar que a cadeia produtiva dessas substâncias não se encontra na favela e não raro nem sequer no país. Em segundo lugar, a favela é apenas o lugar mais visível do comércio de drogas e eles estão longe de serem os únicos de seus consumidores (Machado da Silva, 2010).
Outra grave questão, interligada à criminalização da pobreza, proibição do uso de certas drogas e militarização das polícias, é a vitimização de crianças, adolescentes e jovens. No cotidiano do Rio de Janeiro, múltiplas violações de direitos são cometidas, inclusive pelo Estado e seus agentes; convive-se, até mesmo com massacres, não raro, eivados de uma violência seletiva contra os mais pobres, negros, jovens, mulheres, homossexuais e outros grupos sociais (Flauzina, 2008). Os jovens pobres, não brancos e moradores de favelas são, em geral, retratados como perigosos (Batista, 2002; Coimbra & Nascimento, 2003), vistos com suspeição e tratados com brutalidade. Em muitos episódios, devidamente documentados, o cometimento ou não de delitos não fazia qualquer diferença no tratamento recebido pela polícia, até mesmo de violência fatal.
As vítimas de homicídios nas favelas são principalmente jovens afrodescendentes, do sexo masculino, com idades entre 15 e 19 anos (Waiselfisz, 2011, 2012, 2013), o que mostrou que os homicídios vitimam preferencialmente os homens (93%); mas vitimam muito mais os negros, cujas mortes chegam a ser mais de cinco vezes superiores às dos brancos. Os dados dessas mortes evitáveis apontam para uma continuidade de práticas históricas repressivas e genocidas contra essa população (Zamora & Canarim, 2009).
Contudo, pessoas fora desse perfil não deixam de ser alvos das ‘‘balas perdidas’’; noção discutível, já que há, por exemplo, uma decisão de se começar uma perseguição a supostos traficantes em horário de saída de escola ou um início de tiroteio entre grupos rivais em uma manhã de domingo, com as famílias aproveitando seu descanso – por exemplo. Baseados em depoimentos de moradores das favelas, líderes comunitários e autoridades, uma recente publicação define o cotidiano de vários desses espaços populares como sendo de tensão constante e, não raro, de terror e submissão, com a ação de traficantes e de policiais (Alves, 2013). Esses fatos foram corroborados em relatório encomendado pela ONU (Jahangir, 2004), que parece ter sido o primeiro registro de ameaças a ativistas dos direitos humanos atuando em favelas.
Ainda hoje, a violência persiste, não apenas com a presença de tráfico, mais ou menos ostensivo, como também com abusos policiais documentados em áreas com Unidades de Polícia Pacificadora. Os casos do desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, na Rocinha, e o assassinato da auxiliar de serviços gerais, Claudia Ferreira, no Morro da Congonha, são os episódios mais emblemáticos.
Lembremos que na ditadura militar, as lideranças comunitárias foram duramente perseguidas e mesmo suas meras reuniões, criminalizadas. Os defensores de direitos humanos, herdeiros dessas lutas históricas, estão sempre resistindo contra os poderes armados, que não hesitam em agir. Apesar dos riscos, a progressiva organização de diversas lideranças de favelas e sua atuação cada vez mais ampla, embora não homogênea, na arena política, deveria ser suficiente para mostrar que eles não são um contingente que pode continuar a ser subestimado ou ignorado pelos que tem tomado importantes decisões sobre a cidade.
Defensores de direitos humanos, sofrimento psíquico e Psicologia
A convocação ao compromisso social, que deveria pautar, pelo menos em parte, a agenda das universidades não é exatamente uma novidade. São também conhecidas as críticas às pretensões de uma Psicologia de saberes e fazeres neutros (Nascimento, Manzini, Macedo, & Bocco, 2006).
Também é fato que os Direitos Humanos tem sido, cada vez mais, um interesse e um objeto de estudos e intervenções psicológicas (Schwede, Barbosa & Schruber Jr., 2010). O que se propõe não é meramente que as intervenções dos psicólogos estejam norteadas por eles, acreditando em sua “natureza” e imutabilidade. Isso é o esperado. Mas sim que possamos ter em relação aos direitos humanos uma concepção transversal, onde as diversas lutas se associem, pois os sistemas produtores de violações de direitos humanos (racismo, sexismo, misoginia, homofobia e outros) se reforçam mutuamente (Scherer-Warren, 2006).
Como ficou claro, o exercício da defesa de direitos é potencialmente arriscado e também pode gerar intenso sofrimento psíquico. Não procuramos naturalizar, com essa afirmação, uma demanda clínica. O próprio fortalecimento da dimensão coletiva nos parece muito importante, conforme mostram os estudos de Sawaia (1996) e Schwede, Barbosa & Schruber Jr. (2010). Guzzo & Lacerda Jr. (2007), a partir da Psicologia da Libertação de Martín-Baró, também acentuam a importância deste viver compartilhado:
O fortalecimento surge de um senso de pertencimento a um coletivo, em que ninguém pode alcançar liberdade isoladamente, pois o sofrimento do outro é o próprio sofrimento. Idéias surgem dentro de um coletivo trazendo esperança para um movimento libertador que implica em mudanças pessoais, políticas e sociais (p.239).
Enfim, seria esperado que tivéssemos numerosos exemplos de atendimentos psicológicos, de natureza diversa. Todavia, apesar de nossos esforços, não conseguimos encontrar textos em livros nem artigos científicos, no campo da Psicologia, sobre os temas concernentes aos defensores. Qualquer intervenção precisa partir do conhecimento da realidade concreta dos sujeitos ativos em questão, conhecendo seus sofrimentos, aspirações e lutas. Para a construção de um conhecimento crítico, com uma ação política emancipadora, as mediações teóricas precisam vir de uma psicologia social que rompa com a dualidade entre o social e o individual. E parece que conhecemos bem pouco sobre esses ativistas, não obstante sua importância.
Parece haver uma única exceção em publicação sobre o tema. Em 2008, foi lançada a coletânea “Em Defesa da Vida: A Realidade dos/as Defensores/as de Direitos Humanos sob Situação de Risco e Ameaça no Estado do Pará”, sendo organizadora Ana Cleide Moreira, além de outros pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA), com financiamento da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Foram entrevistados 72 ativistas que se encontravam ameaçados e estabelecido um diagnóstico da situação deles, que incluía sua análise psicológica, de base psicanalítica, feita pela psicóloga Lucia Helena Alves. Os entrevistados mostraram vivências de tristeza, desamparo, depressão, angústia, irritabilidade, ansiedade difusa, culpa, medos infundados, ideias de morte, além de danos às relações familiares, às atividades laborais, à vida social e tem variados sintomas psicossomáticos. Apesar de tão atingidos por violações definidas, como a difamação, as tentativas de criminalização e, especialmente por efeito da vitimização, todas constantes em seu dia a dia, eles revelaram também otimismo, esperança e desejo de viver.
Enquanto escrevemos esse artigo, soubemos que um líder quilombola, Artêmio Gusmão, foi morto a tiros, no Pará. Seu corpo foi abandonado em um matagal, despedaçado. No mês de junho, um jovem defensor que mora em uma favela do Rio de Janeiro, com páginas ativas em redes sociais, ao sair de uma reunião no Centro, ouviu um anúncio de assalto. O suposto ladrão o espancou e tentou matá-lo, mas sem nada roubar. Em maio, um conhecido ativista de outra favela, um homem maduro que já sofreu atentados, foi procurado em casa, por ditos policiais, não identificados. Eles deixaram para os vizinhos a advertência: “Ele fala demais”.
Como o quilombola, essas pessoas nunca vão parar de lutar, não enquanto seu povo, sua comunidade, sua causa for oprimida. Isso certamente lhes custará caro, visto que sustentam uma luta para a qual ainda a sociedade não se encontra desperta. Diante da dor dos outros, que possamos não apenas nos solidarizar, como humanos e cidadãos, mas também prestar a eles o devido atendimento como profissionais psicólogos.
FONTE: E-publicações