Sempre que alguém traz para si uma quantidade abissal de poder, a pecha de ditador acaba por vestir-lhe como uma luva — ou uma toga. A ideia de que o Poder Judiciário possa exercer algum tipo de ditadura é comumente reforçada por uma frase atribuída a Rui Barbosa — jurista importante no Brasil do final do século 19: “A pior ditadura é a ditadura do poder judiciário; contra ela não há a quem recorrer”.
Se Rui realmente disse a tal frase, ainda assim, não é determinante para dizer sobre a sua visão das instituições e a separação dos Poderes. A expressão serve mais para fortalecer teses, em geral vazias de conteúdo, de quem pretende criticar decisões judiciais, e menos para fazer algum sentido conceitual.
Além disso, nas democracias modernas, o Executivo costuma ser o ente federativo que comete abusos e excessos de poder, principalmente quanto à usurpação de funções judiciárias e legislativas dos outros.
Mas, desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem sendo acusado de agir para além de suas atribuições, quando foi aberto o Inquérito 4.781, inicialmente destinado a “investigar notícias falsas e ameaças” contra os membros da Suprema Corte e seus familiares. O que ficou conhecido como “Inquérito das Fake News” — ou “Inquérito do Fim do Mundo”, nas palavras do ministro Marco Aurélio.
Iniciado por Dias Toffoli, que designou a presidência ao ministro Alexandre de Moraes, o inquérito deixou de se limitar aos crimes cometidos contra a corte e expandiu suas ações para coibir investidas contra a democracia. Moraes acabou usando o inquérito para atrair para si uma quantidade abissal de poder, e se transformou em algo que nosso sistema jurídico não permite: investigador, acusador e julgador, concentrados em uma mesma instituição ou pessoa.
Nosso sistema acusatório — e a Constituição de 1988, em última análise — preza pela rígida separação das funções dentro do processo penal, e garante (ou tenta garantir), a imparcialidade do julgador, a publicidade (sempre que possível) dos atos processuais, o contraditório, a ampla defesa, a igualdade dos sujeitos do processo (todos são iguais perante a lei) e as garantias e liberdades individuais.
Ter essas garantias asseguradas quando o Estado resolve punir um indivíduo, exercendo esse poder exclusivamente, dentro dos pactos e contratos sociais estabelecidos, são premissas essenciais em um regime político democrático. O contrário são características de regimes autocráticos.
Paradoxo da tolerância
Porém, somos, enquanto sociedade, fruto de construções históricas, e é preciso analisar ações e os personagens pela ótica de seus contextos. E essa análise não é abonatória, em essência, mas necessária.
Períodos de profundas convulsões sociais, de guerras ou de ameaças diretas ao sistema democrático, devem ser olhadas sob uma ótica específica, e encaradas pelas instituições como situações excepcionais.
O que vimos no 8 de janeiro em Brasília é justamente o resultado da omissão e conivência de instituições que deveriam ser do Estado — não de governos. As Forças Armadas não podem estar, nunca, a serviço do governo de ocasião. E nas democracias não podem atuar politicamente. As polícias, igualmente. Mas os atos golpistas e de terror contra os prédios dos três Poderes não aconteceriam, daquela forma, sem omissão e conivência.
No dia 8 de janeiro policiais foram flagrados tirando selfies com os golpistas e, segundo o jornal The Washington Post, militares posicionaram tanques e três linhas de soldados no local para impedir que os “manifestantes” fossem presos. O governador e o secretário de segurança do Distrito Federal não colocaram efetivos necessários para proteção, que lhes cabia, dos prédios públicos.
Mas as omissões e conivências foram provocadas por um longo período de incitação. O ex-presidente Bolsonaro passou os quatro anos de seu governo gerando animosidades contra os Poderes. Questionou continuamente o sistema eleitoral sem qualquer prova, capitaneou movimentos de rua que pediam golpe de Estado, xingou ministros do Supremo, levantava questionamentos infundados sobre o Congresso e tratava a oposição como “inimigos do povo”.
As palavras do ex-presidente foram ecoadas por redes de comunicação parciais como Jovem Pan. A continuidade de discursos golpistas e incitação à violência contra os Poderes mantinham um enorme contingente de brasileiros que viam a democracia como um sistema falido, incompatível com o Brasil.
A ideia central do pensamento de filósofos respeitados como Karl Popper é de que não se pode permitir atos contra a própria democracia. Contra os intolerantes, a intolerância. Nessa lógica, a Justiça pode e deve pesar a mão contra investidas que visem destruir o regime vigente. Portanto, ações enérgicas do Judiciário — que passam por inquéritos como o que Alexandre de Moraes preside — são essenciais para que incitações golpistas cessem.
Salvo raríssimas exceções, não há que se falar na existência de direitos absolutos. O direito à liberdade de expressão certamente não está no rol das excepcionalidades. Existem limites para “dizer o que bem entende” em uma democracia. Mesmo em sociedades que esse direito é quase dogmático, como a norte-americana, existem outras garantias que se sobrepõem ao livre exercício da opinião. O direito que a sociedade, coletivamente, tem de viver em um regime democrático é imperativo sobre a liberdade de expressão. Quem prega golpe e estimula a violência, precisa sim ser calado.
As promessas inquebráveis
A Constituição que o Brasil construiu na Nova República, que vigora até hoje, traz em sua essência garantias e promessas de cidadania. Quando elenca em seus primeiros artigos os direitos fundamentais do cidadão e os objetivos da República, estabelece que vivemos em uma sociedade que pactua ser “livre, justa e solidária”.
Uma dessas promessas fundamentais que a Carta traz, diz respeito justamente à liberdade e ao devido processo legal: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa” (artigo 5º, incisos LIV e LV).
Suprimir esses direitos também é uma forma de afronta à democracia. Quando Alexandre de Moraes extrapola suas atribuições e atropela o devido processo legal e o sistema acusatório em curso, age também no enfraquecimento democrático.
Em nome do STF, conduzindo um inquérito onde cabem questionamentos sobre sua legitimidade, pessoas foram presas e silenciadas por Moraes. Pelo menos dez parlamentares tiveram suas contas em redes sociais banidas, outros tantos influenciadores digitais igualmente. Em muitos casos afetando não apenas o direito à liberdade de expressão, mas também a fonte de renda de pessoas que operam no mundo digital de forma profissional.
Em uma visão garantista, cabe ao STF a interpretação da Constituição, assim como lhe cabe ser seu guardião. Porém, a corte não está acima dela. Obedecer aos seus princípios não é apenas uma promessa, trata-se de uma obrigação.
Constituição acima de todos
No Brasil atual, o Supremo se viu em outro paradoxo, além do pensado por Popper. Interpretar a Carta Magna de forma a responder ao momento histórico, no que é chamado de “jogo duro constitucional”, seria uma necessidade para que ainda exista uma constituição para defender.
Quando um presidente da República age contra os princípios da Constituição Federal devem existir — e existem — caminhos para que esse ímpeto seja freado. Os freios e contrapesos são previstos no ordenamento legal, devendo ser exercidos pelo Legislativo e por órgãos de controle independentes como o Ministério Público.
Bolsonaro agiu permanentemente contra os preceitos da Constituição de 1988. Flexibilizou indiscriminadamente leis e controles ambientais, atentou contra a saúde pública prescrevendo medicamentos sem eficácia em meio uma crise sanitária sem precedente, agiu contra a inserção de grupos minoritários e marginalizados na sociedade e atentou contra a harmonia dos Poderes.
As democracias acabam. Os valores democráticos não são fortes o suficientes e não há defesas no sistema democrático fortes o bastante para conter alguém motivado a destruí-lo. O Brasil viu isso acontecer em diversos momentos de sua história. Há quase 60 anos um golpe militar iria dar início a uma ditadura de décadas que matou, silenciou e torturou muitos brasileiros.
Os Poderes não podem silenciar diante desse tipo de ameaça. Por uma questão de sobrevivência democrática não só podem como devem agir. O Judiciário, quando provocado, deve determinar que o Estado aja coercitivamente e com o rigor necessário.
À Procuradoria Geral da República (PGR), principalmente, cabe fazer acusações e levar o governo à Justiça, em nosso sistema democrático. Em situação de normalidade. A omissão e o silêncio da PGR durante o governo Bolsonaro, mesmo em momentos de evidente afronta à democracia, foram ensurdecedores. Quando, por exemplo, o ex-presidente reuniu embaixadores do mundo inteiro para tentar macular o sistema eleitoral brasileiro sem qualquer fundamento, a PGR agiu timidamente.
Na omissão, quem age?
Estaríamos vivendo sob um regime democrático se as incitações golpistas continuassem livremente? As tentativas de deslegitimar o sistema eleitoral seriam vitoriosas caso as fake news não fossem coibidas? São perguntas válidas no Brasil de hoje, principalmente depois do 8 de janeiro.
As omissões dos mecanismos de controle, o conluio via orçamento secreto do poder legislativo, a conivência das Forças Armadas — e as ações do Executivo —, atentaram diretamente contra a democracia brasileira. A ação firme do STF foi a última trincheira e se mostrou eficiente para garantir que a Constituição continuasse de pé, mesmo sendo levantada como troféu por golpistas que invadiram os prédios dos Poderes.
Agir quando necessário é uma característica fundamental de quem tem responsabilidade com a República e com a democracia. Mesmo que limites sejam ultrapassados em momentos de excepcionalidade.
Porém, ficaram dívidas com a sociedade. O Supremo precisa, caso a normalidade institucional de fato volte, entender que o momento de agir fora de suas atribuições ficou para trás. O STF precisa sair dos holofotes e do protagonismo, as decisões precisam ser colegiadas, as ações menos intempestivas e o devido processo legal voltar a ser um valor intransponível.
Sim, são promessas que precisam ser feitas. A democracia é feita delas.
*Edmundo Siqueira é jornalista, escritor, servidor federal e agente cultural.
Fonte: Revista Consultor Jurídico.