ICDH

A vulnerabilidade negada é a violência naturalizada — Parte III


*Ana Maria Iencarelli

As Crianças são atraentes como fonte do Prazer Opressor. A opressão é um comportamento característico entre pessoas fracas, inseguras, medrosas, que é alimentado por uma artéria de grosso calibre de violência, como mecanismo compensatório. Buscar um vulnerável, portanto, é o propósito do opressor. O entorno se omite. A família, a mais próxima e a extensa, a escola, os amigos, os vizinhos, os desconhecidos que julgam, condenando a vítima, os operadores de justiça, quase todos fazem o movimento do mecanismo de defesa da identificação com o agressor. Aquele antigo ditado nunca foi tão atual: ‘se não pode com o inimigo, junte-se a ele’. O opressor é forte, esmaga a Mulher e a Criança, para a Criança, principalmente por sua imaturidade, o opressor é idealizado. E logo seguido. A violência exibida de maneira explícita ou velada, dimensão assustadora porquanto permanece na invisibilidade, mesmo sendo anunciada de algum modo, pratica uma manobra que acaba por ganhar, do entorno omisso, um reforço à violência.

Assim, vulnerabilidade e violência se alimentam mutuamente. Precisamos pensar nos estragos que essa dupla indissolúvel causa. Vale ressaltar que a vulnerabilidade é uma condição que tem como necessidade essencial a ajuda de outra pessoa. Quando se trata de uma mulher, por exemplo, ela tende a se iludir que, como adulta, teria a capacidade de fazer frente à opressão imposta por um agressor. Entram como ingredientes, além do medo, elemento básico do ciclo da opressão, aspectos já distorcidos do exercício da maternidade, a vergonha, o desafio provocador, e, todos juntos, promovem o encarceramento no perverso ciclo da opressão.

Permeada pela culpa secular, a vergonha, se sentir ou ser acusada de culpada, faz com que a Mulher chegue a dissimular sua posição de oprimida pelo seu agressor. E tenta transformar essa sensação de vulnerabilidade, num desafio onde acredita que vai conseguir “salvar” o seu predador. Ela não consegue pensar em salvar-se a si mesma. Ela se acredita aquela que aguenta tudo para operar esse salvamento. Pegando emprestado de Paulo Freire em relação ao “ser mais” da dupla professor-aluno, a potencialização da amorosidade, podemos usar, em outro sentido, o termo desse autor “Vocação Ontológica”. No Ciclo da Opressão, a potencialização não da amorosidade, mas da recíproca dependência, maquiada de um alcunhado “amor”, que tem um liame viscoso como uma cola.

A distorção do comportamento da Mulher oprimida que pensa que está protegendo seu filho, ou filhos, ao permanecer numa relação abusiva, parece estar conectada à distorções sociais do que seria o exercício da maternidade. Ela sonega de si mesma a capacidade perceptiva da Criança, ela “esquece” que a Criança entende por diversas linguagens, inclusive a corporal, o sofrimento e as dores da mãe no ciclo da opressão.

Mas, quando temos uma Criança nesse lugar do oprimido por um adulto, a culpa pode aparecer induzida pelo adulto agressor, mas não há vergonha porque não há ainda um código moral formado. No entanto, essa formação do código moral, do código de Ética da Sociabilidade, sofrerá essa marca em suas raízes. A deformação é o caminho que essa Criança experimenta.

Estamos assistindo, nesse nosso tempo sombrio, cada vez menos humanizado, cada vez menos humano, cada vez mais subanimal, uma opressão avassaladora contra Mulheres e Crianças. Já nem tinha espaço midiático a guerra Rússia-Ucrânia. A banalização chegou e invisibilizou as milhares de Crianças assassinadas, feridas, perdidas e sequestradas de suas mães e pais. E estourou outra guerra sanguinária, com requintes de crueldade nunca antes imaginados.
Com o recurso das imagens de internet, não conseguimos saber o que pode estar acontecendo, ou o que é a guerra psicológica das Fake News de grandes lobbies que manipulam a todos nós.

Além desses dois focos de matança, temos hoje 17 países que estão tendo conflitos armados. Nessa soma não entra nosso Rio de Janeiro com a guerra urbana que convivemos. Nesse rolo compressor as imagens de Criança em situações de violência, vão perdendo os contornos. O menino encontrado por um soldado numa praia, inchado pelo afogamento. Estava num barco fugindo de uma guerra. O outro menino em visível estado de choque, sentado numa poltrona laranja, com um ferimento sangrando na cabeça, que não lhe provocava nenhuma reação. Estático por fora e por dentro. Aquela menina no Vietnã, acho, que fugia nua por uma estrada, no rosto o horror. Hoje, quantas Crianças dessas 19 guerras foram alvo de violência pela sua vulnerabilidade?

Até quando, em nosso micromundo, vamos continuar invisibilizando a vulnerabilidade para naturalizar a violência? A Criança não é o futuro. A Criança é o HOJE.


Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos, Colaboradora do ICDH.

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