By Ana Maria Iencarelli* – Colaboradora ICDH
A anomalia não está apenas no indivíduo que mata por motivos fúteis. A barbárie institucional faz incalculáveis estragos sociais
Como é habitual, alguns que negam a realidade que vivemos, questionaram a definição de “Ianomâmis”. Estamos nos importando com as Crianças dos Povos Originários do Brasil. Mas também podia ser da Venezuela, da China, ou do Egito. Já vimos as fotos de aranhinhas similares de Biafra, há alguns anos.
A boa notícia é que essas Crianças, em duas ou três semanas, estão ganhando peso. Fundamental! A resposta dos corpinhos atesta que o Cuidado e a Ciência funcionam, tirando muitas da rota da morte. No entanto, as sequelas cognitivas, afetivas, psicomotoras, de suas competências em seu modo de vida, essas sequelas já foram inscritas e, certamente, irão patrocinar uma deficiência permanente de desenvolvimento.
Todas, importam. Falamos das turcas e sírias. Dizer que as Crianças Ianomâmis não são Crianças Ianomâmis é uma tática de retórica rasa. Essa é uma estratégia para desviar do conteúdo e ficar numa “formalidade” vazia, para confundir e desqualificar o que estamos apontando. Estratégia para desvirtuar o que está sendo posto, obstruindo uma reflexão. Evitando a dor daquelas falências estampadas: a orgânica da Criança, e a Social de todos nós.
Os tiros continuam, como o que matou a menina Maria Eduarda, nove anos, que se divertia com a mãe num bloco de carnaval. Uma discussão entre dois homens na fila do banheiro químico. Um tiro na cabeça entre as 19 pessoas que foram alvejadas. Diversão ou faroeste? Por que aqueles dois homens foram para um bloco de carnaval, onde se aglomeravam centenas de pessoas, incluindo Crianças, portando armas de fogo de repetição?
As lamas continuam. As lamas explícitas, como as do litoral de São Paulo que matou muitas Crianças, mutilou outras tantas, e deixou órfãs outras ainda. A solidariedade vem rápido, mas também vai rápido. Ela é emergencial. Como não há Políticas Públicas consistentes e efetivas, assistiremos a acomodação das vítimas sobreviventes em condições semelhantes, e teremos a repetição dessa mesma notícia daqui a um tempo, agora em prazo cada vez mais curto.
As lamas implícitas, as invisíveis a olho nu, estão por toda parte. Não precisam de fenômenos climáticos extremos. Elas já se cronificaram. Como água que corre por dentro da parede em infiltrações, que abre caminho em meio duro e forte. A barbárie invisibilizada, assim como a água por dentro das paredes, consegue abrir vias, sorrateiramente.
Recentemente, uma desembargadora que publica, sem restrição, sua posição em relação às mulheres vítimas de Violência Doméstica, “apanham por 10 anos e depois vêm pedir para a gente resolver, elas é que escolheram, por feromônios, aqueles homens para serem o pai dos filhos delas e, nós, é que vamos resolver?”, foi eleita pelos seus pares para ocupar o mais alto posto do órgão de combate à violência doméstica do Tribunal de Justiça de seu Estado. Não foi uma indicação política ou de carreira. Foi uma eleição!
Faz-se necessário tentar vislumbrar a dimensão dessa estratégia de Cupim Institucional. Não precisa “fechar” uma instituição, aparece muito. Só precisa ocar, murchar por dentro, mantendo-se, assim, a sociedade cenográfica, que já somos.
Na mesma linha, fomos impactados com mais um triplo assassinato. Encabeçado por um feminicídio, duas Crianças foram mortas pelo pai. Uma Maria Eduarda, de 11 anos, a tiros, um David, estrangulado aos 11 meses. Matar a mãe de um filho já evidencia uma anomalia de caráter. Matar a tiros a própria filha de 11 anos, deitada ao lado da madrasta que a criava, faz crescer a anomalia. Matar um bebê de 11 meses, com as mãos, estrangulando-o, excede a definição de anomalia. É uma ação direta, continuada, contra alguém sem o mínimo de possibilidade de defesa. É cruel demais.
O suspeito dessa chacina familiar, com fortes indícios de vir a ser confirmado como autor, assassinou a noiva a facadas em 2009. Semelhante ao caso de Joanna Marcenal, cinco anos em 2010, ainda não foi a júri. Como pode acontecer isso? Homicídios que não têm a conclusão de inquérito, apesar de inúmeras evidências. Sabemos que pode acontecer. Há cinco anos, um crime político duplo, continua sem ser elucidado. E, nada a fazer.
O mais grave é que esse suspeito de ter assassinado a mulher e os dois filhos, teve uma “avaliação psicológica” assinada por um Perito Forense que afirmou que ele não oferecia nenhum perigo para a filha. Algum motivo teve para escrever isso num laudo. O avô materno estava pedindo a guarda da neta. A mãe dessa Maria Eduarda tinha câncer, mas morreu mostrando hematomas e marcas de violência pelo corpo, segundo o avô, o que ensejou o pedido de Guarda da menina. Esse pedido foi negado porque estava garantido que não havia risco de violência por parte do pai, mesmo tendo ele assassinado uma mulher, sua noiva a facadas e pairar uma suspeita sobre a precipitação da morte da mãe dessa Maria Eduarda.
O que mais me estarrece é que, além do laudo afastando qualquer risco de agressividade desse indivíduo, que já havia cometido um Feminicídio e era suspeito de outro, outros Operadores de Justiça endossaram essa leviandade técnica. Tem Promotor. Tem Juiz. Aceitaram uma garantia que nem mesmo em ausência de evidências pode ser afirmado. Não há como se fundamentar uma garantia de não violência em tempo futuro.
Responsabilizar? Que verbo é esse?
Enquanto isso, tive o relato de uma jovem que teve seu celular subtraído de dentro do táxi, e socorrida, imediatamente, por uma patrulha, ouviu do PM que dirigia o carro, mais jovem que ela, que ela não podia achar que tinha feito alguma coisa errada. E afirmava: a vítima não é culpada, você deve poder ter um celular para se comunicar com sua família como foi, ou para outra coisa.
Um quase garoto é capaz de ter esse entendimento correto. Por que Operadores de Justiça não conseguem? A anomalia não está apenas no indivíduo que mata por motivos fúteis. A barbárie institucional faz incalculáveis estragos sociais.
Foto: Depcom/PMSS)
Ana Maria Iencarelli*
Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos – Colaboradora ICDH.