ICDH

Tragédia: o assassinato de Crianças a machadinha — Parte I

By Ana Maria Iencarelli

A Escola é alvo de uma sociedade que desce a ladeira de um pretenso progresso e evidencia a nossa sociedade de faz de conta

É difícil botar o dedo numa ferida social desta dimensão. Confesso que, apesar dos meus 50 anos de trabalho com crianças e adolescentes, as palavras não chegam, as palavras são pequenas para dizer o enorme tamanho do horror.
No entanto, não posso deixar de analisar a questão do massacre de quatro crianças, e ferimento em mais cinco, pelo viés fenomenológico. Um homem invade uma creche/escola pulando o muro. Munido de uma machadinha ataca as crianças que encontra pela frente, com vários golpes em cada uma delas. Em seguida, foge e vai se entregar, espontaneamente, num quartel ali perto.

A morte dessas crianças e os ferimentos das outras nessas circunstâncias promovem uma comoção em mistura de horror, ódio, rejeição pelo agressor, dor, empatia pelas crianças, por suas mães, seus pais, suas famílias, sentimentos em caldo de impotência. Pressa na solução imediata que sempre tende à linha do armamento, da agressividade contra-atacada. Seguranças armados, detector de metais e psicólogos, tudo imediato. No momento crítico, chamam os psicólogos.

Como se um psicólogo, e só um psicólogo, fosse capaz de “resolver” um trauma de uma dada comunidade. Esse é um equívoco que coloca esse profissional como um salvador, que não é. O trabalho psicológico, não importa a linha teórica seguida, acontece em um tempo peculiar a cada pessoa traumatizada. Não há mágica. O estresse pós-traumático se instala de várias maneiras, em diferentes tempos. Uma professora que socorreu as Crianças na creche, sofreu um infarto e precisou ser operada, alguns dias depois.

Enquanto reuniões e comissões são prementes, a Escola agoniza em sua função de formação socioepistemológica. Faltam professores e, às vezes, telhado, nas Públicas, e sobram preconceitos e episódios de bullying nas privadas, que são minimizados. Sua função está em franca falência.
Por outro lado, a escola é o grande concentrado de vulneráveis. Não à toa, ela é locadora de pessoas com grandes defeitos ou com ausência de caráter. E, a vulnerabilidade, é o maior dos atrativos para os que não têm caráter porque esses buscam o Poder sobre os outros.

A Escola é um alvo de uma sociedade que desce a ladeira de um pretenso progresso. Ataques de alunos que surgem em seu seio, ou de adultos invasores, tanto faz, a faca, a tiros, e, agora, a machadinha, evidenciam nossa sociedade cenográfica, de papelão, uma sociedade de faz de conta. Faz de conta que temos leis, faz de conta que fomentamos o conhecimento, faz de conta que cuidamos da formação da pessoa do amanhã.

Menina de nove anos morre com um tiro de fuzil no Rio de Janeiro, indo para a escola. No dia anterior, menina de oito anos, voltando da escola, morre com um tiro na cabeça, em Minas Gerais. Aluno esfaqueia colega na escola no Amazonas. Há algumas semanas, uma professora foi assassinada por um aluno, no Rio de Janeiro, tentando impedi-lo de fazer uso da arma contra os colegas. Em Santa Catarina, na pacata e elogiada Blumenau pela qualidade de vida, quatro Crianças são assassinadas e cinco feridas, a machadinha. Indo, vindo ou dentro da escola, as Crianças estão sendo assassinadas.

Se há, hoje, uma mudança na abordagem da notícia desse tipo de crime, acordada pelos veículos de informação, não publicitar o nome de criminoso para diminuir o efeito “ibope” que incentiva outros criminosos, continuamos a ver pessoas que repostam vídeos de atrocidades cometidas contra crianças, sob a ilusória alegação de que é para prender o agressor. Não pensam que estão publicitando um crime e expondo a Criança a situação vexatória. Existe o caminho curto de fazer chegar à polícia, ao Ministério Público. Vale ressaltar que repostar para “pegar” o agressor é crime.

Facilmente, se lança mão da justificação de que os autores dessas tragédias estavam em surto. Ou que tinham sofrido bullying e mataram em busca de vingança. Bem semelhante ao calo social de dar como motivo para os Feminicídios a frase “não se conformou com o término do relacionamento”. Mas, como coadunar a sequência de comportamentos de alguém em surto psicótico matando crianças em série e logo a seguir, recobrando sua lucidez, magicamente, ao se dirigir a um quartel e se entregar?

Analisando o comportamento praticado, com muita dificuldade, nos deparamos com alguém que repete um gesto violento várias vezes, tirando a vida de pequenos, com as próprias mãos, pequenos que eram facilmente dominados e que nada lhe tinham feito. A machadinha retrocede a ação repetitiva ao mais primitivo dos primórdios da necessidade de sobrevivência, há milênios. Não há nenhum rastro de lógica nesse comportamento que não foi instantâneo, durou alguns minutos, sem que nenhum rastro de humanidade o detivesse. Nem o olhar suplicante de suas vítimas. E, então, sai da cena dos crimes hediondos que tinha cometido e caminha para se entregar a figuras de autoridade num quartel. Isso não tem nenhum sentido.

Temos tantos bons pesquisadores e pensadores sociais, por que não convoca-los para pensar junto a etiologia da violência crescente em nossa sociedade? Por que não nobilizar a sociedade para refletir sobre suas ações violentas e suas omissões protagonizadas pela impunidade reinante de todos os tipos de crime que cometemos, todos? A impunidade estrutural está matando nossos filhos. A não reflexão leva ao erro por repetição piorada.

*Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos, colaboradora do ICDH.

São Paulo (SP), 28/03/2023 – Alunos da escola estadual Thomazia Montoro e secundaristas do movimento estudantil prestam homenagens às vítimas do ataque, na porta da escola, em Vila Sônia. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

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