“Não precisa de mãe, tem uma madrasta que é uma mãezinha para ela”. Frase escrita por um juiz, na justificação de que não deveria ser cumprida a reversão de guarda de uma menina, para voltar para o cuidado da sua mãe, após o atraso de cumprimento de dois anos de decisão pelo retorno ao lado da mãe. A menina tinha seis anos, hoje oito anos, e assim o juiz diz que ela já está adaptada à convivência paterna e família, que tinha sido forçada há dois anos. Para completar a defesa da falha da prestação de justiça, completa com essa pérola sobre não ser necessário mãe. Tem madrasta.
Desde o advento da Psicanálise, a figura da mãe, e sua importância, vem sendo estudada. A qualidade do vínculo Materno-infantil, a qualidade da Maternagem que acompanha e promove o desenvolvimento pleno da 1ª Infância, de importância já reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) através do Marco Legal da 1ª Infância, estudos científicos e Teorias de comprovação científica, todo esse acervo aponta para a necessidade da relação mãe-bebê que é a garantia da sobrevivência para o filhote mamífero.
Não estamos, contudo, desconsiderando a importância da figura do pai para o desenvolvimento da Criança, sobretudo, no que tange ao aprendizado da lei, da convivência afetiva e social. É de suma importância que a Criança construa com o pai a segunda relação de troca, em bases claras e, portanto, limitantes mas, ao mesmo tempo, asseguradoras. O “não”, o “não pode”, precisam ser aprendidos, solidamente.
A Mãe, o vínculo visceral materno, os cuidados maternos, a Maternagem, não importam mais. Entrou em cena, e ganhou protagonismo junto à Criança, a Madrasta. Precisamos, urgentemente, dedicar estudos e teses à figura da Madrasta, em alta para se efetuar a exclusão da mãe, um propósito explicitado na justificação dos autos, que transcrevi acima. Para que mãe se tem uma madrasta que é uma “mãezinha”? Uma postura como essa toma uma dimensão alarmante quando sai das mãos de um Operador de Justiça.
Todos conhecemos o estereótipo da madrasta dos Contos de Fada. São muitas. A da Branca de Neve, a da Rapunzel, a da Gata Borralheira, por exemplo. Não por acaso, são enteadas, meninas, configurando uma relação de três mulheres. A mãe e a filha, e a nova esposa do pai. Esta dinâmica entre as três figuras femininas é resultante de emoções, sentimentos e desejos em acirrada competição, nutrida por inveja e desejos de eliminação da que é sentida como em vantagem. O Espelho Mágico explorava exatamente isso: tu és a mais bela, minha rainha. Os maus-tratos eram o suficiente, enquanto a beleza estava garantida pelo Espelho. Mas quando ele revelou que era a Branca de Neve a mais bela, a rainha decidiu eliminá-la.
Conheço, e todos devem conhecer, boadrastas. Sim. Pessoas excelentes que cuidaram de seus enteados e enteadas da maneira mais amorosa e responsável possível. São muitas. Mas não são todas. A dinâmica de afetos nocivos misturados aos, socialmente, admiráveis, continua a acontecer quase como nos Contos de Fadas. O que levaria um Operador da Justiça de Família a dizer que uma Criança que teve seu Direito à Mãe amputado aos seis anos de idade, não precisa mais da mãe porque a madrasta é sua “mãezinha”?
Urge que se definam novos termos técnicos referentes a essa relação cada vez mais frequente na vida das Crianças. Madrastagem, vínculo madrasto-infantil, afeto madrastal, necessitam de estudos científicos. Vale ressaltar que tanto a Criança quanto a mãe são acessíveis à figura da mãe substituta, mas essa substituta sendo nomeada pela mãe e acompanhada pela mãe quando necessário ou possível. Ou seja, a mãe passa o bastão, e se mantém na retaguarda. No caso da madrasta moderna, a escolha não tem a participação da mãe, os cuidados da mãe são rechaçados, muitas vezes não há nenhuma comunicação entre as duas, a mãe e a “mãezinha”/madrasta, e se estiver em regime da alegação de alienação parental, um fake termo, a mãe nem sequer é autorizada a ver a Criança. Ela se torna a bruxa malévola. Afinal, foi tachada de “alienadora”, figura da mais alta periculosidade, segundo pessoas que não leram o inventor desse termo, mas repetem sem o devido conhecimento.
Esses artifícios jurídicos promovem apenas a Privação Materna Judicial e todas as graves sequelas dela advindas. A Privação Materna é objeto de inúmeras teorias científicas, conhecidas, popularmente, pelo abandono materno dos bebês deixados em caçambas de entulho, ou em sacola de mercado jogada numa lagoa. A “alienadora” é condenada a abandonar seu filho ou filha. É compulsório depois que a mãe denuncia, como é obrigatório pelo Art. 13 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), abuso sexual intrafamiliar.
Quênia Gabriely, dois anos, foi assassinada com lesões no corpo, mais de 50 no tamanho de corpo de dois anos, de várias idades, marcas em cicatrização e marcas atuais, além de evidências de estupro de vulnerável, foi entregue ao pai aos três meses porque ele se negou a pagar pensão alimentícia para a filha. O Juiz aceitou a violação à lei. Esse ato foi denominado, em juízo, num “acordo” entre os pais. Não consigo imaginar as condições desse “acordo”. Desde os três meses, proibida judicialmente da essencial amamentação materna, ela tinha perdido a mãe. Mas tinha uma madrasta. Uma “mãezinha”?
M., 15 anos, entrou em desespero quando soube que seria obrigado à visitação presencial com o pai, abusador e torturador, que goza da cumplicidade de uma perita que afirma que os abusos em seu ânus eram coisas normais que os homens fazem entre eles. Com muitos prejuízos pela infância ceifada, M. voltou a falar em suicídio ou homicídio.
Negligência, imperícia, e imprudência. Operadores de Justiça de Família tinham que responder pela irresponsabilidade ancorada no despreparo e na má intencionalidade. Quantas Quênias, 2023, ainda serão torturadas e mortas como o Henry, 2021, e a Joanna Marcenal, 2010? As leis não protegem essas Crianças. A Lei Henry Borel amplia o espectro dessa barbárie e penaliza o entorno que não denunciar. Com a Quênia, ninguém viu nada, nenhuma marca, nem mesmo na creche que frequentava há um mês, nem vizinhos, ninguém. Ela morreu sofrendo.
Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos, Colaboradora do ICDH.